domingo, 10 de novembro de 2013

Do direito à desconexão ao dano existencial no teletrabalho. O excesso de horas extras destinadas ao trabalho.


Para a elaboração deste texto tomei por base o trabalho do advogado, em especial neste atual cenário de mudança de paradigmas, qual seja, o momento de implantação do processo eletrônico. 
A implementação, em larga escala, do Processo Judicial Eletrônico no ano de 2013, trouxe uma série de questionamentos e quebras de paradigmas em relação ao trabalhador que deverá, obrigatoriamente, se adaptar ao sistema.
O CNJ, instituidor do projeto, "vendeu" aos advogados, ao judiciário e a todos aqueles instrumentalizadores do processo, como um benefício, um avanço ou algo que iria facilitar a vida de todos, e inclusive, (motivo que achei mais plausível) irá diminuir a circulação de papel e será mais ecologicamente correto.
Pois bem, essa propaganda para a “venda” do processo eletrônico deve ser analisada sobre alguns parâmetros específicos, nos âmbitos social, psicológico e da saúde do próprio trabalhador e de sua família, que passo a abordar a seguir.
Primeiramente, abordo a relação do processo eletrônico posta de encontro a limitação da jornada de trabalho. A propaganda do CNJ inclui o benefício de se peticionar e consultar o processo a qualquer hora e local, bastando para isso acesso a internet, assinatura digital, e alguns softwares cedidos de forma gratuita.
Diante deste cenário, já podemos enxergar advogados trabalhando após às 18h, de madrugada, em finais de semana, enfim, em “qualquer hora e em qualquer lugar”.
Ocorre que, quando se analisa o profissional autônomo, chega-se a conclusão de que este poderá administrar mais o seu tempo, os seus prazos e terá mais liberdade para fazer o que bem entender do seu tempo de sobra. Ledo engano, o profissional autônomo, apesar de ter seu custo reduzido com cópias e impressões, irá trabalhar cada vez mais, pois além de ter que ficar em horário comercial a disposição dos clientes, ainda poderá, e irá fazer, protocolos em dias e horários que antes não eram permitidos. Ou seja, antes as 18h não havia mais nada a ser feito, pois não poderia mais se protocolar nada e o expediente do escritório já tinha terminado. Com a nova tecnologia, cada vez irá se trabalhar mais para se ganhar a mesma quantidade de dinheiro para ter uma “vida digna”.
Agora, pense no advogado que é contratado de um escritório de advocacia, que eu estimo sejam em torno de 70% dos advogados do país, o advogado que antes tinha que terminar todos os seus prazos fatais (do dia) até as 15 horas, para que algum estagiário, ou advogado mesmo, pudesse levar as petições para serem protocoladas nas varas ou tribunais, agora pode trabalhar tranquilamente até às 23h59min59seg, pois é esse o limite para se protocolizar um prazo do dia, ou seja, será que esse advogado “empregado” teve uma vantagem com a implementação do PJe? Ou será que por ter mais tempo para ser feito o protocolo ele poderá produzir mais, já que o protocolo não fecha mais? Essa é a dúvida que tenho, iremos trabalhar menos ou mais?

E a jornada de trabalho, como fica? A ideia de flexibilização da jornada ainda causa certo furor na justiça do trabalho, pois, acredita-se que o trabalhador será ferido no seu direito à desconexão, direito este que já é bastante discutido entre os doutrinadores e já vem ganhando espaço no judiciário trabalhista.
A ideia de desconexão é a mesma de tempos passados, tentar "libertar" os trabalhadores pra que possam desligar-se de suas atividades laborais, e ter direito ao ócio[1], ao lazer e, por consequência, à saúde mental.
A linha de pensamento segue no sentido de que a atividade laboral não pode retirar a essencialidade do trabalhador, que é de ser um ser humano social, para se tornar, apenas, uma força de trabalho ou uma máquina humana que não precisa de descanso, nem lazer.
 A nossa Constituição Federal, conhecida como cidadã, assegurou vários direitos sociais aos brasileiros, como o direito ao lazer e à saúde, e são exatamente estes direitos que podem ser violados com a conexão integral às atividades laborais, sem qualquer controle de jornada, ou limitação na desta.

Antigamente, nos primórdios do direito do trabalho, não havia legalmente a estipulação da jornada máxima de trabalho, os empregados trabalhavam em fábricas ou fazendas sob os olhos de seus empregadores, totalmente subordinados. Ao final do dia, porém, iam para casa e desfrutavam de suas famílias, bem como da vizinhança e amigos, enfim, possuíam uma vida social regrada, apesar da ausência de proteção legal.
Com a implantação efetiva do capitalismo e da industrialização das grandes cidades, as jornadas de trabalho foram ficando cada vez mais extensas, tornando a vida do trabalhador totalmente ligada ao seu trabalho, se adoecia, era descartado e colocada outra “peça” em seu lugar[2].
Ocorreu, naquela época, que com as extensas jornadas, os empresários começaram a se dar conta que não tinham mais consumidores, ou seja, os trabalhadores eram os próprios consumidores dos produtos que produziam, se eles estavam produzindo muito tempo, não teriam tempo para consumir. Essa constatação, somada à indignação dos trabalhadores, fez com que os empresários diminuíssem o tempo de trabalho para que o sistema capitalista pudesse funcionar. Sem consumidores, não há porque produzir tanto.
 Atualmente estamos vivendo um sistema parecido, nas suas devidas proporções, ao que já ocorreu no passado, pois “... a história é cíclica, e tudo o que aconteceu acontecerá outra vez, até ao mais pequeno pormenor.”[3] como diria Nietzsche em sua teoria do Eterno Retorno[4].

Os meio telemáticos aplicados às relações de trabalho podem trazer uma série de benefícios para as pessoas que as usam: como encurtamento de distância, eficiência em relação ao tempo das tarefas a serem executadas, alto fluxo e troca de dados, respostas imediatas a dúvidas e a procedimentos (que antigamente levavam um tempo razoável para serem resolvidas). Podemos citar como exemplo dessa revolução, o envio de cartas e a longa espera pela resposta das mesmas.
O problema principal é que esse aceleramento de procedimentos acarreta, ao ser humano, uma série de obrigações que antes não existiam, como por exemplo, ter que responder imediatamente um e-mail ao ser recebido, pois a pessoa “do outro lado” da conexão está esperando a resposta ansiosamente.
É atividade corriqueira em escritórios de advocacia, e talvez em outra série de escritórios não-jurídicos, o envio e o recebimento de inúmeras mensagens eletrônicas. Seguidamente ocorre das mensagens eletrônicas “e-mails” não serem respondidos de imediato, e o emissor da mensagem eletrônica ligar, através de um aparelho telefônico, para a pessoa destinatária pra avisar ou cobrar que enviou a mensagem e que a mesma ainda não foi respondida.
Essa ansiedade pela informação e o fácil acesso de conteúdo disponível na rede mundial, remete a um problema que cada vez se verifica mais comum, o excesso de conexão com o trabalho. Responder mensagem de trabalho em finais de semana, após a jornada “física”, levar trabalho para casa, enviar prazos em períodos que se não houvesse a tecnologia não poderiam ser mandados, enfim, uma série de meio que são oferecidos como benefícios. Assim, fica a pergunta: A tecnologia está a nosso favor, ou contra nós?
 Exemplo recente desta desconexão, foi de uma notícia veiculada no sitio eletrônico do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região, (já comentada no post anterior) a mesma foi divulgada como se fosse um avanço na implementação do PJe. A notícia tratava do ajuizamento da primeira inicial no processo eletrônico à 0h05min do dia 23/09/2013 na Vara do Trabalho de Porto Alegre[5].
Diante desta notícia surge a pergunta: Como não é possível o jus postulandi (ingressar com a ação sem advogado) no processo eletrônico, certamente um advogado estaria trabalhando a essa hora para enviar uma petição inicial, caso não tivesse essa possiblidade de envio após às 18h, se não existisse o tão eficiente e polêmico PJe, o que estaria fazendo esse trabalhador?
A ideia é que, como o advento do processo eletrônico, não haverá mais jornada de trabalho fixa, e em breve não haverá mais “horário comercial” tendo em vista as diversas tecnologias que estão sendo inventadas pelo capitalismo voraz.
Precisamos consumir claro, como faremos? Tudo pela internet! E os amigos, os relacionamentos, como ficarão? Redes sociais! Webcans! Parece exagero pensarmos assim, mas não estamos muito longe das relações, tanto trabalhistas como sociais, puramente digitais.
Esse excesso de tecnologia e de afastamento entre os seres humanos faz com que cada vez, trabalhemos mais intelectualmente e menos fisicamente, podendo acarretar problemas “não visíveis” de saúde.
Antigamente era fácil verificar quando o trabalhador estava com alguma doença relacionada ao trabalho, bastava um exame clínico, uma radiografia, e lá estava a lesão física, (coluna, tendões, músculos...) mas e agora? Com o trabalho manual sendo substituído pelo intelectual, como saber se a ineficiência está ligada ao trabalho pura e simplesmente ou se é por outro motivo? Verifica-se que o problema é muito mais difícil de ser diagnosticado, pois está relacionado à mente humana.
Dados da OMS informam que a depressão, em 2030, será a doença mais comum do mundo.[6], ultrapassando casos de câncer e de doenças cardíacas. 
Se o trabalhador está em casa, longe dos tradicionais modelos fordistas industriais, como irá o empregador, ou algum órgão de fiscalização, verificar se o empregado está sofrendo de alguma doença? Como o trabalhador irá “faltar” ou não se conectar ao trabalho algum dia? Poderá estar trabalhando em horário noturno, doente, em ambiente insalubre, em jornadas dilatadas, e não se poderá verificar essas condições, simplesmente por não saber onde esse trabalhador está.
Com o desmembramento dos escritórios ou das empresas (modelo toyotista) ou de uma jornada mista (jornada normal no estabelecimento físico e outra jornada em casa, ou onde estiver conectado) a tendência é de que o empregado/trabalhador irá ter a sua jornada de trabalho dilatada, ou seja, irá trabalhar mais, ficará mais tempo conectado ao trabalho, ou quiça, não terá mais jornada de trabalho, pois estará totalmente conectado ao seu empregador e a seu ofício.
Talvez somente vá se desconectar ao gozar férias, isso se não ficar conectado a internet ou possuir um Smartphone dotado de todas as tecnologias que não o deixarão “desinformado”. A possibilidade de este trabalhador receber todas as formas possíveis da informação e dos meios de comunicação da era moderna, não o deixará desconectado.
Atualmente, na doutrina mais moderna, muito se tem falado sobre o direito fundamental a desconexão, que nada mais é do que um direito constitucional à saúde (física e mental) e ao lazer, sendo totalmente interligada a limitação efetiva da jornada de trabalho.[7]
Jorge Luiz Souto Maior [7], em sua obra, entende que a não limitação de jornada é inconstitucional e cita o caso do artigo 62, I da CLT, como o principal vilão.
Nesse sentido, inclusive, houve aprovação do Enunciado 17 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, com o seguinte teor:

17. LIMITAÇÃO DA JORNADA. REPOUSO SEMANAL REMUNERADO. DIREITO CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADO A TODOS OS TRABALHADORES. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 62 DA CLT. A proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, consagrada nos incisos XIII e XV do art. 7o da Constituição da República, confere, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direitos ao repouso semanal remunerado e à limitação da jornada de trabalho, tendo-se por inconstitucional o art. 62 da CLT.

Verifica-se que o teor do enunciado é bem claro ao afirmar a proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, não podendo existir norma que não obedeça esta regra.
Esta limitação não é uma invenção, ela tem amparo em estudos e lutas dos trabalhadores pelos três “oitos” (oito horas de trabalho, oito horas de ócio/lazer e oito horas de descanso/sono).
Em relação ao trabalho a distância citado, principalmente em relação ao processo eletrônico “24 horas”, essa limitação se torna “flexibilizada”, ou seja, o trabalhador, em tese, não pode escolher onde irá executar suas atividades, ele simplesmente obedecerá às ordens de seu empregador. Para este é muito mais vantajoso que o seu empregado permaneça fora de um ambiente tradicional de trabalho, pois poderá trabalhar além da jornada mínima e não precisará remunera-lo por isto, pois estará amparado pelo citado artigo 62, I da CLT.
Essa situação é muito bem colocada em um Artigo chamado "Horas Extras em Trabalho Externo" escrito pelo Juiz do Trabalho da 4ª Região, Carlos Alberto May[8], onde o autor menciona que se o não controle da jornada for benéfico apenas ao empregador, a sistemática está equivocada, é a chamada “omissão conveniente”, onde a empresa se beneficia do sistema, pois torna conveniente alegar que não era possível controlar o horário de trabalho do empregado, obtendo com isso, vantagem financeira em não ter a obrigação de pagar a contraprestação pelo excesso de jornada.
Essa alegada ausência total de controle de jornada é praticamente inadmissível nos dias de hoje, onde se pode localizar qualquer pessoa, por G.P.S., telefone celular, rastreadores, registros de pontos de venda, entre outros.

A ausência de controle de jornada, pela alegação de que o empregado está trabalhando fora “dos olhos do empregador”, por óbvio que irá ter como consequência o extrapolamento da jornada legal. Esse excesso de ligação com atividade laboral, está totalmente ligado ao excesso de horas trabalhadas que por si só já causa uma série de transtornos ao trabalhador, tanto em relação a evolução profissional como na vida social. Esta situação na qual o trabalhador está sendo submetido já vem sendo tema de debate na doutrina e inclusive o poder judiciário está solidário com esse panorama atual. Vejamos recente decisão do TRT da 4ª Região em relação ao tema:

DANO EXISTENCIAL. Há dano existencial quando a prática de jornada exaustiva por longo período impõe ao empregado um novo e prejudicial estilo de vida, com privação de direitos de personalidade, como o direito ao lazer, à instrução, à convivência familiar. Prática reiterada da reclamada em relação aos seus empregados que deve ser coibida por lesão ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal). Data: 18/04/2013 Redator: RAUL ZORATTO SANVICENTE processo 0001133-16.2011.5.04.0015. in www.trt4.jus.br

O dano existencial no Direito do Trabalho, também chamado de dano à existência do trabalhador, decorre da conduta patronal que impossibilita o empregado de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades recreativas, afetivas, espirituais, culturais, esportivas, sociais e de descanso, que lhe trarão bem-estar físico e psíquico e, por consequência, felicidade; ou que o impede de executar, de prosseguir ou mesmo de recomeçar os seus projetos de vida, que serão, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional, social e pessoal.
Essas lesões comprometem a liberdade de escolha e frustam o prejeto de vida que a pessoa elaborou pra a sua realização como ser humano. Julio César Bebber[9] optou por qualificar esse dano com o epíteto já transcrito justamente porque o impacto por ele gerado “provoca um vazio existencial na pessoa que perde a fonte de gratificação vital”.
A quebra de expectativas do trabalhador em relação a sua carreira, pela falta de tempo, compromete e muito o seu avanço profissional, o seu networking e a sua existência como ser humano na sociedade. A Legislação que temos está obsoleta, não há qualquer regulamentação para o que estamos prestes a vivenciar.
O trabalhador não está protegido diante dos avanços da tecnologia, a CLT, apesar de ter sofrido algumas modificações é de 1943 e a Constituição Federal, no último dia 5 de outubro completou 25 anos.
Assim, como já dito, apesar de terem sofridos alguns ajustes ao longo do tempo, as normas citadas foram formuladas quando, ainda havia muito trabalho manual e pouco intelectual, agora, passado todo esse tempo, caberá ao legislador, ou ao poder judiciário, enfrentar esses conflitos com base nas fontes possíveis de direito existentes.

Por fim, retornando ao exemplo do Processo Eletrônico e do trabalho do advogado, a ideia que está sendo vendida a estes, em especial, sobre a possibilidade de trabalho 24 horas por dia, nos sete dias da semana, parece ser totalmente infundada e está na contramão da ideia de qualidade de vida do trabalhador.
Com a mudança dos parâmetros conservadores das instituições, onde o trabalhador ficava 8 horas dentro da fábrica e na saída se desligava totalmente de seus afazeres laborais, está sendo ultrapassada pela ideia de flexibilização da jornada de trabalho. A pergunta que fica é se as tecnologias estão vindo a favor, ou contra o trabalhador? Ou seria mais uma forma de fomentar o capitalismo e fazer com que o ser humano produza mais riqueza, sem qualquer limitação? Acredita-se, infelizmente, que a segunda resposta é a mais viável.

Referências:
 [1] LAFARGE, Paul. O direito a preguiça. eBooksBrasil.com. Rocketedition. 1999.Ed. Claridade.
[2]  CHAPLIN, Charles. Filme Tempos Modernos. “Modern Times”. Kino Internation Corporation. 1930.
[3] KENNY, Anthony História Concisa da Filosofia Ocidental. 1998 Título original:A Brief History of Western Philosophy - Tradução: Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figuei-redo, Pedro Santos e Rui Cabral. Ed. Temas & Debates.
[4] YALOM, Irvin D.. Quando Nietzsche chorou. 2009. Ed Agir.
[5] http://www.trt4.jus.br/portal/portal/trt4/comunicacao/noticia/info/NoticiaWindow?cod=779062&action=2&destaque=false&filtros=
[6]http://www.estadao.com.br/noticias/geral,oms-depressao-sera-doenca-mais-comum-do-mundo-em-2030,428526,0.htm
[7] SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Do Direito à Desconexão do Trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Campinas, n.23, 2003.
Disponível em : http://trt15.gov.br/escola_da_magistratura/Rev23Art17.pdf Acessado em 01/10/2013.
Acessado em: 01/10/2013.
[9] BEBBER, Júlio César. Danos extrapatrimoniais (estético, biológico e existencial) – breves considerações. Revista LTr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 73, n. 1, p. 26-29, jan. 2009.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

PJe é bom pra quem?

    Apesar de já ter uma série de varas que já adotavam o Processo Judicial eletrônico no país, nesta segunda-feira (23) o mesmo foi implantado aqui no Judiciário Trabalhista da capital gaúcha. Na notícia da inauguração do PJe postado no site no TRT da 4ª região, teve um fato que me chamou bastante a atenção. A primeira reclamatória foi ajuizada à 0h5min (meia noite e cinco minutos), como não é possível o jus postulandi por meio do PJe, provavelmente tinha algum advogado trabalhando a essa hora. O que é apresentado como vantagem pro advogado pode ser encarado como a ausência de jornada ou ausência do direito à desconexão, vejamos a citação da notícia:


Vantagens Além de eliminar o uso do papel, o PJe-JT automatiza diversos atos processuais, proporcionando maior agilidade ao andamento dos processos nas unidades judiciárias. A expectativa, com isso, é de que os processos eletrônicos sejam julgados em menos tempo. Para os advogados, o PJe-JT também traz uma série de vantagens: menor necessidade de deslocamento à Justiça do Trabalho, peticionamento via internet 24 horas por dia, possibilidade de os procuradores das duas partes acessarem os autos ao mesmo tempo, dentre outras.

    O peticionamento via internet 7 dias por semana e 24 horas por dia é apresentado como "vantagem". Não quero ser saudosista, nem mesmo levantar a bandeira da anti-tecnologia, mas lembro da época que o advogado acabava os prazos até as 16h para que fossem protocolados no Fórum, agora, o advogado não tem mais horário para acabar o prazo, ou melhor, tem, 23h59min59seg, ou seja, poderá trabalhar mais tempo, fazer mais coisas, poderá ser mais explorado... enfim, isso é uma vantagem?

    O PJe foi imposto aos advogados, não foi vendido, os advogados não compraram essa ideia, o judiciário impôs e agora os advogados devem se adaptar a ele. Entendo que o Processo Eletrônico é uma modernidade, mas agora temos que pensar nos seres humanos que instrumentalizam o mesmo. Monitorar a que horas estão sendo feitas e protocoladas as petições enviadas ao sistema. Acredito que a maior parte dos envios ocorrerá dentro do período "comercial", mas temos que atentar para a quantidade de petições e iniciais protocolizadas fora desse horário, como foi o caso da citada "primeira" inicial ajuizada à meia noite e cinco minutos.

    Tenho minhas dúvidas se o PJe vai ser bom para os advogados. Para o judiciário e para as partes talvez seja, mas para os 800 mil advogados existentes no país tenho muitas dúvidas.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

"Dos protestos ao movimento social" (José Pastore)

                                A eclosão dos protestos de rua me fez rever as teorias que procuram explicar a dinâmica das manifestações coletivas. Estas costumam surgir abruptamente, refletindo aspirações não atendidas, como vem ocorrendo no Brasil. Nesses episódios, o comportamento da massa pouco tem a ver com o comportamento dos indivíduos. Alguns autores dizem retoricamente que as multidões têm personalidade própria e, por serem contagiantes, atraem pessoas que dispensam análise crítica das motivações. A adesão é feita com base na imitação, sugestão e interação intensas com as próprias massas. A propagação é proporcional aos sentimentos de frustração e à percepção da inadequação das instituições que deveriam atender as expectativas e não o fazem.
                As manifestações coletivas ganham ímpeto quando se identifica um vilão — ainda que vagamente. No caso do Brasil, o governo vem sendo responsabilizado pela insatisfação popular, inicialmente pelo aumento da tarifa de ônibus e, em seguida, por várias insatisfações latentes, em especial, pelos desperdícios de recursos públicos que conspiram contra a melhoria de vida dos brasileiros. As redes sociais potencializaram o papel do vilão e fizeram o movimento ganhar foco. O governo ficou encurralado, tendo sido rotulado, a um só tempo, como culpado e sem moral para agir.
                A movimentação atual poderá ganhar mais força com a chegada do papa Francisco, que vem ao Brasil para abençoar a Jornada Mundial da Juventude. Milhões de jovens estarão concentrados em praças públicas, em situação de incontrolável contágio. Poderá surgir ali a oportunidade para homenagearem o Santo Padre — que prega a humildade, a moralidade e o respeito ao próximo — e condenarem os perdulários governantes com cartazes em vários idiomas para serem entendidos em todo o mundo via internet, movimento de dimensão planetária.
                Até o momento não surgiram líderes. É assim mesmo. Os líderes costumam emergir quando as manifestações coletivas se transformam em movimentos sociais. Ao contrário das manifestações coletivas, os movimentos sociais são estruturados, possuem objetivos claros e planos definidos para a viabilização. Nesse estágio é que surgem indivíduos que, por terem encarnado os protestos iniciais, se tornam líderes, desde que revelem possuir soluções para atender os descontentes.
                Os líderes podem ser do tipo carismático ou do tipo administrador. O líder carismático se impõe pelas qualidades que diz ter e que são aceitas pelos liderados. Tende a ser impulsivo, dramático, com ares de herói e focado na solução dos problemas imediatos. Na memória dos brasileiros, Lula ocupa posição de destaque. O líder administrador tende a ser objetivo, pragmático, propositivo, cauteloso e preocupado também com o futuro do país. Estaria aí o estilo de Fernando Henrique Cardoso.
                Para ser efetivo, o movimento social terá de mobilizar grandes massas e conquistar a confiança dos adeptos para, com isso, impulsionar as mudanças pretendidas. Tudo depende da estruturação do movimento e do sucesso inicial do plano de mudança. Se vingar, o movimento social pode modificar ou substituir as instituições vigentes e, em caso extremo, mudar o regime político do país. É que vimos no Oriente Médio nos anos recentes.
                Reitero, porém, que nem toda manifestação coletiva evolui para movimento social. Muitas manifestações perdem força ao longo do caminho. Caso recente é o movimento Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, que se dissolveu em pouco tempo. O que se pode antever no Brasil? Estamos num ponto crítico. Os protestos das ruas pode m avançar na direção de um movimento social ou se esgotarem por desânimo, cansaço ou ação dos governantes.
                No momento, o governo está sem ação. Pode sacrificar alguns bodes expiatórios (trocar ministros) na tentativa de reconquistar a confiança do povo. Mas, aos olhos dos manifestantes, será difícil se livrar da pecha de vilão. Se prosseguir, a decepção poderá comprometer os planos de reeleição dos governantes de plantão. Dela poderão ocorrer desdobramentos voltados para reformas profundas dentro ou fora da ordem vigente.
                Disso tudo se tira importante lição. O Brasil mostrou ao mundo que uma parcela expressiva da população não se enquadra nos resultados das pesquisas de opinião pública que até outro dia classificavam os brasileiros como o povo mais feliz do mundo. A esses pesquisadores fica a recomendação para, daqui para a frente, observarem com mais acuidade os sentimentos latentes dos brasileiros.
  
José Pastore é professor de relações do trabalho da FEA-USP e membro da Academia Paulista de Letras.

Publicado em 29/06/2013 no Correio Braziliense.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Domésticas - o que faltou dizer


9 de abril de 2013 | 2h 04
José Pastore *
Se a sua empregada doméstica precisar fazer uma hora extra, lembre-se de que ela terá de descansar 15 minutos antes de começar. Se você precisa de muitas horas extras, atente que ela não pode exceder dez horas por semana. Se dorme ou não no emprego, ela terá de ficar 11 horas sem trabalhar depois de encerrada uma jornada. Atenção: ela não pode comer em menos de uma hora em cada refeição. Se ela demorar mais de dez minutos para entrar no serviço, trocar de roupa ou tomar banho na hora da saída, esse tempo será contado como hora extra. Se ela dorme no quarto com uma criança ou um doente, terá de ser remunerada com adicional noturno e eventualmente hora extra por estar à disposição daquela pessoa. Se você tiver de compensar em outro dia as horas a mais que ela trabalhou no dia anterior (banco de horas), lembre-se de que isso tem de ser previamente negociado com o sindicato das domésticas. Se você concede à sua empregada um plano de saúde e ela se acidentar e for aposentada por invalidez, o plano terá de ser mantido pelo resto da vida. Se, para melhor controle do seu desempenho, você estabelecer metas e tarefas diárias que sua empregada considere exageradas, ela pode processá-lo por danos morais. E se você não pagar a indenização que o juiz determinar, ele penhorará (online) o saldo da sua conta bancária - sem prévio aviso.
Tudo isso está na lei e na jurisprudência. E há muito mais. Para ser franco, o espaço todo deste jornal não seria suficiente para explicar as complicações decorrentes dos 922 artigos da CLT e dos milhares de normas administrativas e orientações dos tribunais. Por isso vou parar por aqui, mesmo porque não quero ser considerado catastrofista. Nem por isso, porém, posso concordar com a opinião da nobre desembargadora Ivani Bramante, publicada neste caderno (2/4), segundo a qual os patrões estão com paranoia (sic) em relação à nova lei das domésticas.
O fato é que, no País inteiro, não se fala noutra coisa. A apreensão é geral. Os políticos já perceberam o desconforto e a irritação causados pelo impensado ato. Muitos já reformulam o seu cálculo eleitoral: se ganharam a simpatia das empregadas, perderam o apoio dos milhões de eleitores que não podem prescindir dos serviços de uma babá ou de um cuidador de idoso. A esse grupo se juntarão as empregadas que serão dispensadas.
Convenhamos, a execução do atual cipoal trabalhista já é difícil nas empresas. O que dizer das famílias, que não dispõem de contador, departamento de pessoal e assessoria jurídica? A nova lei, além de encarecer os serviços (que já estão caros), vai mudar o relacionamento entre empregada e empregador, que, de confiável e amistoso, passará a burocrático e conflituoso.
Os políticos buscam agora colocar uma tranca na porta que acabaram de arrombar. Mas as emendas poderão sair pior do que os sonetos. E podem ser inúteis, pois, a esta altura, as famílias que podem já se puseram a desenhar a sua vida sem a ajuda das empregadas domésticas.
A questão do encarecimento também é séria. O meu amigo Osmani Teixeira de Abreu, conhecedor profundo das relações do trabalho no Brasil, acredita que, em médio prazo, vai sobrar empregada doméstica, porque muitos empregadores não terão condições de cumprir a nova lei. Ele argumenta que na empresa, quando há um aumento de custo, o empresário o repassa ao preço ou o retira do lucro. O empregador doméstico não tem como fazer isso, porque geralmente é empregado e vive de salário, que não é elástico.
Ou seja, na pretensão de melhorar a vida das empregadas domésticas, nossos legisladores deixaram de lado o que é mais prioritário no momento presente, que é a formalização dos 5 milhões de brasileiras que não contam sequer com as proteções atuais. Será que aumentando os direitos e criando tanta insegurança elas vão ser protegidas? Penso que não. Muitas serão forçadas a trabalhar como diaristas, sem registro em carteira.

* José Pastore é professor de Relações do Trabalho da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Letras